domingo, 27 de abril de 2014

memória

  "Temos que exterminar esta gente pela raiz (...); 
os homossexuais têm de ser eliminados"

 Heinrich Himmler, Chefe das SS
[Plant, 1986, p. 99]


Na Alemanha Nazi de Hitler estima-se que nas denominadas "Listas Rosa", tenham identificado mais de 100 mil homossexuais, muitos deles condenados a terapia de "mudança de orientação sexual", outros castrados por ordem do Tribunal, sendo que, sensivelmente 50 mil (número estimado), tenham morrido nos campos de concentração. 

Mas mais que números e palavras, deixo ficar apenas o relato de Pierre Steel, cidadão francês, que esteve num campo de concentração por ser homossexual e a única vítima francesa a falar abertamente sobre o assunto:

"Não havia solidariedade para com os prisioneiros homossexuais; pertenciam à casta mais baixa. Outros prisioneiros, mesmo entre eles, costumavam agredi-los.
(...)
 Mas tardo em evocar a prova que para mim foi a mais dura, apesar de ter ocorrido nas primeiras semanas do meu encarceramento. Mais do que qualquer outra, contribuiu para fazer de mim uma sombra obediente e silenciosa entre as demais.

 Um dia, os altifalantes convocaram-nos para a Appellplatz. Sob os berros e o ladrar dos cães, apresentámos-nos de imediato. Dispuseram-nos em sentido, formando um quadrado, rodeados pelos SS como na chamada da manhã. O comandante do campo estava presente, com o seu estado-maior. Pensava eu que ele iria uma vez mais impingir-nos a sua cega fé no Reich, acompanhada de uma série de directrizes, insultos e ameaças, à imagem das célebres vociferações do grande mestre, Adolfo Hitler. Na verdade, tratava-se de uma prova infinitamente mais penosa, uma condenação à morte. Para o centro do quadrado que nós formávamos, trouxeram um homem jovem, ladeado por dois SS. Horrorizado, reconheci o Jo, o meu doce amigo de dezoito anos.*

Eu não dera pela sua presença no campo. Teria chegado antes ou depois de mim? Não nos tínhamos visto nos poucos dias anteriores à minha convocação pela Gestapo. Senti-me gelar de terror. Tinha rezado para que ele escapasse às rusgas, às listas, às humilhações. E ali estava ele, sob o meu olhar impotente embaciado pelas lágrimas. Ao contrário de mim, o Jo não tinha transportado correio perigoso, arrancado cartazes ou assinado declarações. No entanto, fora preso, e ia morrer. As listas estavam, pois, bem completas. O que se teria passado? O que lhe reprovavam aqueles monstros? Na minha dor, esqueci-me completamente do teor da ata de execução.

 Em seguida, os altifalantes começaram a difundir uma ruidosa música clássica, enquanto os SS o desnudavam. Depois, enfiaram-lhe violentamente na cabeça um balde de latão. Lançaram contra ele os ferozes cães pastores alemães, que o atacaram primeiro no baixo ventre e nas coxas, antes de o devorarem perante os nossos olhos. Os seus gritos de dor eram ampliados e distorcidos pelo balde. Rígido e titubeante, com os olhos esbugalhados por um horror sem nome e as lágrimas a correrem-me pelas faces, orei ardentemente para que ele não tardasse a perder a consciência.

 Desde então, ainda me acontece frequentemente acordar a meio da noite aos gritos. Decorridos mais de cinquenta anos, aquela cena passa-me incessantemente pela vista. Jamais esquecerei o bárbaro assassinato do meu amor, sob os meus olhos, sob os nossos olhos — porque fomos centenas a testemunhá-lo."
* O Jo era o namorado de Pierre


Moi, Pierre Seel, déporté homosexuel 
"Eu, Pierre Seel, deportado homossexual"
[Livro escrito por Pierre Seeel, 1994]

19 comentários:

  1. Colocaste-me uma lágrima no canto da vista :(

    E, tanto se fala nos judeus, que esquecemos outros que sofreram horrores :(

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    1. Vou comprar o livro Francisco. Embora já saiba que vou viver revoltado umas semanas depois. Mas sabes que as críticas ao Holocausto e ao povo Judeu que sofreu aqueles horrores passam também por ai. Houve outras realidades que foram perseguidas e levadas para os campos de concentração. Pior que ser judeu num campo de concentração era ser homossexual. Sabias que eram violados com réguas de madeira e espancados continuadamente? Muitas das vezes à frente de toda a gente? Mesmo depois da guerra acabar, como a homossexualidade era um tabu, muitos do que sofreram este tratamento ficaram calados, porque só nos anos fiinais dos anos 70/ principios dos 80, a homossexualidade foi desconsiderada como crime em países como a França ou a Alemanha. Até lá, muitos se suicidaram (os sobreviventes) porque não conseguiram ultrapassar o que viveram. E não podemos pensar que foi há muito tempo. Não foi. Foi ontem.

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  2. Salvo erro, já tinha lido esta história em algum lugar.

    Foram, efectivamente, tempos muito difíceis para os homossexuais alemães e de todas as zonas ocupadas pela Alemanha. Além das humilhações, sevícias, maus tratos, os homossexuais ainda eram sujeitos a experiências "médico-científicas", como as lobotomias, uma intervenção tristemente inventada por um médico português, Prémio Nobel.

    Para piorar, como referiste, o pós-guerra foi sinónimo de libertação para judeus, testemunhas de Jeová, romanis, etc, etc, mas não para os homossexuais, uma vez que a homossexualidade seria descriminalizada muitos anos depois.

    Enfim, trágico. Pensamos que as atrocidades estão lá para a Idade Média e, afinal, as maiores tiveram lugar no século XX, tão pertinho de nós...

    p.s.: Se houver alguma gralha, já escrevi isto meio a dormir (cama, já!).

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    1. Sabes Mark mesmo se tivesse gralhas era um comentário válido. Talvez mais válido que aqueles comentários muitos elaborados e corrigidos.A verdade é que não foram só os judeus a sofrer. Houve muitos outros e a questão dos homossexuais é recente, porque foi uma verdade bem escondida. Só em 2002 é que a Alemanha pediu formalmente desculpa à comunidade homossexual pelo o que sofreu no Holocausto. Ontem estava a ler umas coisas sobre o assunto, e daí esta publicação, e vi coisas que nunca pensei ser possível. E o primeiro chefe das SS era gay e ajudou Hitler a chegar ao poder, mas quando este último percebeu que a homossexualidade do primeiro poderia ser um problema não teve nenhum pudor em mandar matá-lo porque não era puro. Para ele, os homossexuais não eram puros porque apesar de até serem "arianos" (coisa que nem sequer existe) não podiam procriar e assim eram "inúteis". E além de tudo o que li me ter deixado chocado, mais chocado fiquei com o facto de que a taxa de sobrevivência dos homossexuais nos campos de concentração era muito baixas, mais baixas que os outros público-alvo como os judeus, por exemplo. Mas as pessoas têm a memória curta. Infelizmente.

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  3. Estou horrorizado. Completamente.
    Como é possível? As pessoas que assistiram a isso devem ter ficado completamente traumatizadas. Um pouco ao espelho dos nossos combatentes na Guerra Colonial.
    Não sei se conseguiria ler o livro...

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    1. Como não podiam falar do que passaram Horatius, muitas destas vítimas acabaram por se suicidar, porque a homossexualidade era crime. E quem teve o azar de ficar sobre a administração da antiga URSS não teve melhor sorte.

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    2. Em relação há homossexualidade, eu próprio reconheço que ainda hoje, apesar da voz oficial do partido ser a favor, é uma daquelas coisas que se defende e em que muitos não acreditam. Há aí um caminho ainda a percorrer...

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  4. eu ando a ler o livro de Anne Frank e este texto ainda aumenta mais o meu desprezo aos nazis, foram golpes demasiado baixos, demasiado!

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  5. r. será sempre, mesmo :)

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  6. Que horror.
    Fiquei com lágrimas nos olhos...

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    1. Anouska compreendo perfeitamente. Eu também fiquei super revoltado.

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  7. Tenho também que comprar este livro! Não só pela parte que fala sobre a homossexualidade, mas porque é também um testemunho dos horrores dos campos de concentração. É um tema que me interessa, na medida em que, não devemos voltar a cometer os mesmos erros!

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    1. Sim Adam, e durante muito tempo foi falado apenas do povo Judeu, e embora tenha sido o grosso das vítimas, a verdade é que houve muitas mais, e por muitos mais motivos. Um deles, a homossexualidade.

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  8. Não há dúvida que "o homem é o lobo do homem". É absolutamente impossível imaginarmos o que será ter vivido tais situações. E assustador pensar que não aconteceram a assim tanto tempo.

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    1. Eu faço ideia como é que muitos sobreviventes conseguiram depois "sobreviver". E queixamos nós de coisas sem importância. Senti-me pequenino Mr Lekker.

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  9. Que forte, que horror! não tenho palavras, não tenho palavras.

    dentrodabolh.blogspot.com

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    1. Os humanos são capazes das maiores atrocidades Bolha. Infelizmente.

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Este blogue não é uma democracia e eu sou um ditador'zinho... pelo que não garanto que o comentário seja publicado. Mas quem não arrisca...