"No corredor perguntavam-me quem eu era, se era o Bellegueule, de quem toda a gente falava. Fizeram-me esta pergunta que depois repeti incansavelmente durante meses, anos, "És tu o paneleiro?"
"Um dia, tudo acabou. Foi a minha mãe. Ela não sabia que ia indiretamente contribuir para a multiplicação dos insultos na escola, das tareias. Eu estava no barracão com os outros três. O Stéphane estava deitado sobre o meu corpo marcado com o selo da feminidade pelo anel que eu tinha no dedo indicador. O Bruno penetrava o Fabien. A minha mãe chegou. Não a tínhamos visto, vinha com o recipiente de vidro na mão, cheio de migalhas para alimentar as galinhas. Quando a vi, ali, diante de nós - demasiado tarde para perceber a rutura, aquele segundo em que ela deve ter passado da situação de mulher que alimenta as suas galinhas, gesto mecânico e quotidiano, ao de mãe que vê o filho de dez anos apenas a ser sodomizado pelo seu próprio primo".
"Tornar-se um rapaz passava necessariamente pelas raparigas. Tinha encontrado a Laura nesse mesmo ano que os dois rapazes tinham deixado a escola."
"Depois a Laura rompeu através de uma carta."
"Ela aproximou-se para me beijar mais uma vez. Agarrou-me as mãos, colocou-as sobre o peito, depois deslizou as suas para dentro das minhas calças. Acariciava o meu sexo que permanecia inerte. Não conseguia simular o desejo. Tentei pensar noutra coisa para que o meu sexo se erguesse e a Sabrina se sentisse tranquila, mas quanto mais me concentrava mais as hipóteses de despertar a minha excitação se tornavam improváveis e longínquas. Ela continuava, insistia no meu pedaço de carne ainda mal coberto de um tufo de pelos louros, acariciava-o, torcia-o em todos os sentidos. Comecei por imaginar que fazia amor com ela, Sabrina, sabendo que semelhante imagem não conseguia fazer-me entesar. Depois imaginei corpos de homens contra o meu, corpos musculados e peludos que teriam entrada em choque com o meu, três, quatro homens sólidos, brutais."
"Nada a fazer. Cada contacto de Sabrina com a minha pele remetia-me para a verdade daquilo que se passava, do seu corpo de mulher que eu detestava."
"Os insultos, ainda que menos frequentes, continuaram durante muito tempo, apesar da minha obstinação em me masculinizar, já que estes se baseavam não na minha atitude no momento em que era insultado, mas numa perceção de mim instalada há muito tempo nas mentalidades".
"Alguém chega,
Tristian.
Interpela-me
Então, Eddy,continuas bicha?
Os outros riem.
Eu também."
Ao contrário do que tinha pensado/planeado, nas férias não consegui ler todos os livros que queria. Dei prioridade aos mais antigos e levei o "Acabar com o Eddy Bellegueule". Já sabia que era um livro sobre a homossexualidade, a descoberta, o bullying, o querer fugir, o querer ser "normal", o querer gostar de raparigas da mesma forma que se sente desejo por homens. É um livro que toca e é uma escrita que não deixa ninguém indiferente. Pessoalmente, e embora tenha tido uma vida diferente do Eddy, confesso que existem episódios ali que são meus. O querer ser "normal", o de tentar ganhar um grau de masculinidade que me demitisse de ter problemas e o facto de levar porrada porque era o miúdo que era fácil de fazer chorar. O paneleiro. O maricas. O sensível. A verdade é que ao ler o livro desenterrei passados que queria esquecer e sei perfeitamente que esses episódios me marcaram e ajudaram a transforma-se naquilo que sou hoje. Senti o mesmo que o Eddy, quando achava que ao atingir a maioridade e "fugisse" da aldeia onde cresceu, que tudo iria mudar radicalmente. A verdade, é que muitas vezes também sonhei o mesmo, e sabendo porém, que a terra não tem a culpa, porque essa pertence às pessoas, não consigo deixar de odiar o local onde cresci e onde a minha adolescência se confunde com a minha vontade de querer ser apenas eu próprio - amarrada ao facto de não o conseguir ser porque iria ser novamente ridicularizado, humilhado, sovado e perseguido.
Como digo imensas vezes, somos mais parecidos do que pensamos, e muitos passaram, ou vão passar, pelos mesmos problemas, dilemas e dificuldades. Aconselho a leitura e deixo fica ainda a crítica do Público ao livro. Podem ler aqui.